“Resta-me o orgulho de ter escapado à cesariana, com um parto vaginal, sem epidural.”


Tinha 31 anos quando engravidei. Primeiro filho, muuuuuuito desejado e programado ao pormenor. Enchi-me de informação: devorei livros, mantive o computador ligado horas a fio, ávida de saber que ia procurando na internet. Para mim, um parto natural sempre foi uma evidência tão incontornável como a do “dois e dois são quatro”. E quando digo “natural” falo de um processo em absoluta sintonia com o que a natureza manda, sem batotas.
A médica obstetra que me seguiu ao longo da gravidez já tinha dado a entender que não gostaria nada que a Rita se acomodasse por mais de 38 semanas. O mesmo é falar de indução às 39 semanas, nem mais um dia. Eu ia dizendo que sim, como quem diz “está bem, abelha”, certinha de que nada nem ninguém me faria precipitar um trabalho de parto que eu sabia muito bem que poderia iniciar-se sem qualquer risco até às 41 semanas de gestação, uma vez que a gravidez decorreu com toda a normalidade e a Rita estava muito bem: um bebé de percentil 50, muito bem posicionado, com óptima frequência cardíaca, num útero enorme e de colo muito macio, acomodado numa bacia bem larga.

Eu sabia vagamente o que era uma contracção, uma vez que as senti desde muito cedo, talvez desde os 5 meses de gravidez, e vim a confirmar mais tarde, na preparação para o parto, que aquilo que vinha sentindo eram realmente contracções: moinhas fortes, que me paralisavam por momentos e deixavam o útero muito duro e empinadíssimo. A bebé deixava de mexer durante as contracções, para logo a seguir retomar a actividade frenética que a caracterizou desde sempre. No dia 8 de Setembro de 2004, demasiado cedo – vim a sabê-lo depois – comecei a dita preparação para o parto, pelo método psico-profiláctico, com a Dra. Graça Mexia, que preparou também o meu marido.
Com 37 semanas completas, a minha inexperiência dizia-me que a Rita estava para nascer: tornou-se muito difícil andar, sentia a bebé muito baixa. Uma ida à Clínica e um “toque” muito meigo, diga-se de passagem, confirmou as minhas suspeitas: o início do trabalho de parto estava iminente. Mas a verdade é que as contracções eram as do costume, nem mais, nem menos, sem qualquer regularidade de intervalo entre elas. Às 38 semanas começou o calvário dos CTGs semanais, feitos na maternidade onde a Rita havia de nascer, facilitados por um médico conhecido.
No CTG das 40 semanas, tive o desprazer de experimentar o tão temido “toque” à séria – foi aquilo a que posso chamar uma verdadeira brutalidade, absolutamente inútil, que não fez progredir em nada o trabalho de parto tão esperado. O tal médico conhecido ainda acrescentou: “Colo do útero permeável a dois dedos. Óptimo! Isto agora vai sangrar – é natural. Amanhã estou cá. Aparece logo de manhã e ainda se dá mais um jeitinho.

Ela está mesmo para nascer.” A verdade é que ainda apareci no dia seguinte, mas o instinto disse-me que era melhor fugir. Assim fiz. Trouxe a Ritinha acomodada e sossegadinha para casa. No dia seguinte, sexta-feira, dia 26 de Novembro, às 8h30 da manhã, ainda deitada, com o meu marido ao lado (que esperava também pacientemente o sinal) senti finalmente a tal contracção, que eu tinha tanto medo de não reconhecer, temendo que passasse por uma igual às outras. Mas não! Esta era francamente diferente e logo à primeira percebi que estava na hora. Sentei-me na beira da cama e respirei como aprendera.
As minhas inspirações e expirações profundas não foram suficientes para acordar o Paulo, embora fizessem bastante barulho. Esperei pela próxima já de relógio na mão. Veio dez minutos depois. Mais uma… O intervalo de tempo era regular, sempre de dez minutos, o que me pareceu muito curto – pensava que ia começar com intervalos de vinte minutos ou meia hora.
Debrucei-me sobre o Paulo e disse-lhe baixinho ao ouvido: “Amorzinho, é agora, entrei em trabalho de parto.” Nunca o vira passar tão rapidamente do sono à vigília. Perguntou-me: “Começou?!”. Fui logo para o banho, um duche rápido, embora soubesse que deveria aguardar pacientemente em casa, até as contracções aparecerem de cinco em cinco minutos – não tinha interesse nenhum em ir fazer a dilatação para a maternidade…

Depois do banho, as contracções sucediam-se de cinco em cinco minutos. Confesso que me assustou a rapidez do processo. Já o meu marido tinha tomado banho e ainda nos debatíamos na incerteza de ir ou não para a maternidade. Às 11h00 da manhã decidimos que estava na hora de arrancar. Os dois fingíamos uma calma que não tínhamos – há coisas que as aulas não ensinam, obviamente.
Da minha ficha de admissão constava o meio dia como hora de entrada. Devia ser mais ou menos isso. Entrei sozinha. O pai tem de ficar lá fora. Deram-me um saco onde deveria colocar toda a minha roupa e objectos pessoais, incluindo o relógio – explicaram-me que, caso houvesse necessidade de me conduzir ao bloco operatório, eu não poderia ter nada comigo, para garantir a assepsia de uma eventual intervenção. Este foi o primeiro revés num processo que eu queria controlar desde o início. Deixei de controlar o tempo. Depois de tudo bem amassado dentro do saco, até as botas de cano alto, segui para observação.
Confirmava-se o trabalho de parto em curso, com três dedos de dilatação. Fiquei desapontada, porque achei pouco, contava com cinco dedos pelo menos, tendo em vista as contracções já tão fortes e próximas. Assim sendo, perguntei se me deixavam voltar a sair par ir dando umas voltas a pé. A médica foi peremptória: Não! Já nem sequer ficava ali na dilatação, ia imediatamente para a box. Desde este momento passei a sentir-me como um cãozinho acuado, sem coragem para reagir. Pensava: se reajo, tenho medo que me tratem menos bem. É melhor deixar de parte as minhas convicções em nome da minha filha. É melhor não arranjar problemas. Mal sabia eu que, justamente em nome dela, era hora de reagir! São coisas que a vida nos vai ensinando assim…

Ainda na sala de observação, a médica perguntou, sem tirar os olhos da ficha que preenchia, como se fosse uma mera formalidade: “Vai querer epidural, não é verdade?” Só a minha resposta a fez tirar os olhos do papel: “Não.” Felizmente, o que disse então não teve sobre mim qualquer efeito, ou melhor, até teve – tornou-me ainda mais convicta na decisão de não querer epidural. Disse-me sorrindo: “Ah! Não quer agora, mas vai querer depois!”
Dali passei ao átrio de saída, por onde tinha entrado, para entregar ao meu marido o saco com as minhas coisas. Expliquei-lhe que já não me deixavam sair e despedimo-nos tristes por termos de nos separar, mas eu garanti que o chamavam quando chegasse a hora. Pedi-lhe por tudo que fosse almoçar, comer qualquer coisa, mas disse-me que não conseguia, ficaria à espera de ouvir o meu nome aos microfones da sala de espera.
Voltei a entrar. Encaminharam-me para uma casa de banho onde teria de ser depilada e me aplicariam um clister. A auxiliar de enfermagem, muito simpática, fez de tudo para me deixar à vontade, mas já não era possível. A verdade é que me sentia cada vez mais pequenina e desamparada. Segui então para a box e deitaram-me numa mesa de parto, com as costas levantadas, felizmente! Não suportaria ficar completamente deitada!
Comecei a tremer incontrolavelmente com frio. Supliquei uma manta vezes sem conta, mas as caras que me atendiam eram tantas, que eu já não sabia a quem me tinha dirigido e ia repetindo o meu pedido a cada vulto que mexia em meu redor. O trabalho de parto foi rápido, para um primeiro filho, mas passaram por mim, ao longo de quatro horas, pelo menos três equipas médicas! Uns iam almoçar e vinham outros; uns iam ao cafezinho e lá vinha outra cara nova; a parturiente do lado gritava e lá ficava eu sozinha, entregue a mim… e o corrupio nunca mais acabava! Mas o pior não era a agitação. Pior mesmo era sentir que tudo voltava ao zero a cada cara nova que chegava: novo “toque” e nova exclamação: “Ela está sem epidural???!!! E lá respondia a enfermeira que mais tempo vi ao pé de mim, em ar de troça: “Pois… o que é que se há-de fazer?! Diz que quer assim, que no tempo da mãezinha também não havia disso e as mulheres tinham filhos!!!” Pouco tempo depois de ter chegado à box, insistiram comigo para me manter deitada de lado, o que foi desastroso! Não me sentia bem assim e não fui preparada para esta posição de trabalho de parto. A enfermeira continuava a dizer-me que aquilo seria rápido, que estava para muito breve, com o colo do útero completamente apagado e a dilatação a progredir maravilhosamente.

Então percebi que se tinham esquecido do Paulo! E lembrei: “Não se esqueceram de chamar o meu marido, não?!” A enfermeira gritou: “Ah! Quer o pai?! Chamem depressa o marido desta senhora! Depressa!!!” O Paulo chegou logo a seguir. Foi tão bom vê-lo! A enfermeira decidiu romper-me a bolsa quando já estava com oito dedos de dilatação. Avisei assim que comecei a ter vontade de fazer força e logo que me deram sinal verde, voltei a pôr em prática o que aprendi. Nesta fase, já o clister que me administraram se revelava absolutamente inútil: por três vezes tive de pedir para me virem limpar – isto porque me deixavam imenso tempo sozinha, mesmo em período expulsivo, a tal ponto que o meu marido acabou por concluir: “É melhor gritares como fazem as outras, se não ninguém te liga!”
Aquela posição de lado deixava-me numa grande atrapalhação, não era assim que queria estar! Não foi nada daquilo que aprendi! Lá ia fazendo força, como achava que estava certo, a cada nova contracção. Esta fase, que deveria ser a mais rápida e fácil, prolongou-se por uma eternidade e ninguém me dizia nada. Ao fim de um tempo vejo outro médico junto de mim (mais um!) que, depois de exclamar “Sem epidural??!!” me diz simplesmente: “Está exausta. O esforço que está a fazer já não está a servir de nada. Vamos dar-lhe uma ajuda, sim?” Eu acenei que sim com a cabeça, já desesperada e sem me atrever à teimosia, com medo que a minha filha não estivesse bem. A enfermeira, enquanto descia a garrafa de soro para a maca, ia dizendo baixinho, como se me pedisse desculpa: “Alguma coisa se passa, não sabemos o quê… cordão curto, talvez…”
Deste momento guardo a recordação mais marcante do meu parto: a cara do Paulo, de braços caídos, lágrimas escondidas, a ver-me sair. Se não estivesse presa sei que tinha arranjado força não sei onde para lhe dar um beijo.

O maqueiro lá me levou a uma velocidade estonteante, que me deixou assustada e me fazia levar as mãos às portas com medo de cair. À porta do bloco operatório ouvi uma médica que falava a dois estagiários: “É um processo menos evasivo e que não comporta os riscos de uma cesariana”. Fiquei assim mais calma, porque percebi que falavam do auxílio com recurso a ventosa, não de cesariana. Não teria o parto com que sempre sonhei, mas sempre ficava mais próximo. Assim que aproximaram a maca da mesa de operação disseram-ma: “Vá! Passe para lá!” E eu só pensei: “Como??!! Não sou capaz! Não consigo!” Pensei mas não disse… sempre o tal receio de vir a ser mal tratada, limitava-me a acatar ordens, muito obediente. Só pedi: “Um momento. Estou com uma contracção, eu passo já.” Nisto ouvi: “Vamos! Não temos o dia todo!” E passei imediatamente. Alguém exclamou ainda: “Mas está sem epidural!!!” Neste instante voltei a ver o médico que me tinha falado na box e que dizia para o grupo de estagiários: “Temos aqui uma mãe exemplar! Com um autocontrole impressionante! Isto vai ser rápido.”
Confesso que estas palavras foram milagrosas e não sei se foi por isso que foram ditas, ou se eram francas. Sei que fiz força duas vezes: da primeira senti uma tesourada e à segunda a Rita nasceu! Ouvi: “Pronto! Nasceu!” Eram 18h04. Nove horas e meia depois da primeira contracção, às 8h30 da manhã, ali estava ela! 3,440 Kg; 49,5 cm; índice de Apgar 10. Ansiosamente olhei para a ver e agarrar, recordando a imagem gravada em mente, tantas vezes vista em filmes e documentários, da mãe que finalmente pode serenar com o seu bebé encostado ao peito. Não. Nada disso.

Pude vê-la, sim, mas nas mãos da médica que operou a ventosa e que se preparava para a aproximar de mim, quando o médico das palavras doces gritou: “Não! Não estique o cordão!” E pronto… levaram-ma.
A médica massajava-me a barriga e rolava suavemente o cordão entre os dedos, procurando facilitar a expulsão da placenta, enquanto comentava com os estagiários: “Até meia hora é normal, é fisiológico” Senti uma ligeira dor e vi que a médica estranhava o comportamento do cordão que parecia desfazer-se, esfarelava. Perguntou pela colega responsável pelas cesarianas e pediu-lhe ajuda. A tal colega explicou-me que ia dormir uns dez minutos, que até me ia saber bem. Percebi que a dequitadura seria manual. Antes do efeito da anestesia se começar a fazer sentir, ainda perguntei: “A minha filha?” e adormeci. Quando acordei virei-me automaticamente para o lado onde a tinha visto pela última vez e perguntei de novo: “A minha filha?” Trouxeram-ma, finalmente!

Fiquei com ela embrulhadinha ao meu lado, mas por muito pouco tempo. À saída do bloco lá estava o Paulo, ansioso, com todos os disparates a passarem-lhe pela cabeça para justificar a demora da nossa chegada. Um enfermeiro pegou então na Rita, pô-la ao colo do pai e eu segui para o recobro, de novo sem filha. Na sala de recobro perguntava por ela e se podia dar-lhe de mamar. O enfermeiro dizia que sim, mas só depois, quando descesse para a enfermaria, o que só aconteceu às 22h30! Tanto tempo sem mim! Eu tanto tempo sem ela! Porquê?! Não entendo! Que foi que me aconteceu de facto? O que foi que motivou o auxílio da ventosa? Que aconteceu à minha placenta? Porquê a dequitadura manual? Nunca tive resposta para estas perguntas… Nunca mais voltei a ver a infinidade de caras que passaram por mim a voar. Não tinha a quem fazer perguntas.
E fiquei assim, até hoje, nesta frustração, que só posso comparar à de um aluno que passa um ano inteiro a estudar, a preparar-se o melhor possível para um exame, para depois chumbar. É assim que me sinto ainda hoje, afogada nas minhas dúvidas. Resta-me o orgulho de ter escapado à cesariana, com um parto vaginal, sem epidural. E a quem me disse: “Vá! Diz lá agora. Para a próxima queres a epidural, não é?!” – posso dizer: Não! O próximo será de novo sem epidural e correrá exactamente como eu quiser!
É com o pensamento nas futuras mães, sobretudo as de primeiro filho, que aqui deixo este relato, para que possam viver o seu parto como SEU DE FACTO.

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