O parto natural e o parto normal marcaram a minha vida como acontecimentos reais. Por isso, e apesar do assunto estar na ordem do dia e em debate há mais de 70 anos, não posso deixar de comentar a recente publicação da “Declaração Conjunta de Princípios sobre o Parto Normal” (1) por parte das organizações Canadianas de Saúde Materna. Ao fim e ao cabo, na Nova Zelândia, a minha mãe foi uma das primeiras a usar o método do “parto natural” defendido por Grantly Dick Read (2), quando nascemos, em casa, a minha irmã gémea e eu, seguidas de três irmãos, incluindo mais um par de gémeos. Depois disso, e ao fim de mais de 30 anos, os meus dois filhos nasceram de parto natural – embora naquela altura se chamasse “parto com preparação” – um num hospital em Rochester, Nova Iorque; e o outro num hospital na Nova Zelândia. Uma geração mais tarde, foi a vez da minha filha, no início do novo século, cujos dois filhos nasceram também de parto natural, o primeiro num centro de nascimento, nos Estados Unidos, e o segundo em casa.
A descrição das componentes destes partos naturais e normais é demasiado óbvia – trabalho de parto e parto fisiológicos, nada de medicação ou intervenções médicas, parto espontâneo, sem episiotomia, separação mãe-bebé reduzida ao mínimo, e amamentação precoce e exclusiva. Mas hoje em dia, na maior parte dos países ocidentais, ter este tipo de “parto natural” é um acontecimento muito invulgar num hospital, e de ocorrência muito mais provável em casa, com uma parteira, ou num centro de nascimento. À luz dos padrões actuais de assistência à maternidade, incluindo a recente declaração de princípios (1,3,4), os partos gemelares da minha mãe, com apresentação pélvica para o primeiro gémeo em cada parto, seriam considerados tudo menos “normais”. Mas, para ela, estes foram tanto “naturais” quanto “normais”.
Duas declarações bem conhecidas sobre “parto normal” provêm da Organização Mundial de Saúde (3) e do Grupo de Trabalho para a Assistência Materna, composto pelo Royal College of Midwives, pelo Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, e pelo National Childbirth Trust (4). O desenvolvimento da nova declaração do Canadá (1) teve diversos grupos de origem – A Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), a Association of Women’s Health, Obstetric and Neonatal Nurses of Canada, a Canadian Association of Midwives, o College of Family Physicians of Canada, e a Society of Rural Physicians of Canada. Para além destes, ao longo dos anos, grupos da sociedade civil, activistas em matéria de gravidez e parto, quer nos Estados Unidos, quer no Reino Unido e noutros países, desenvolveram as suas próprias declarações de princípios sobre o “parto normal”.
Desta forma, ocorre-nos a pergunta: seria realmente necessária mais uma declaração de princípios sobre o “parto normal”? A declaração canadiana de consenso acrescenta à informação que já existia algo de novo, importante e útil?
Antes de nos debruçarmos sobre os pormenores, convém referir algumas questões. Como destaca a declaração da OMS, não obstante toda a discussão e pesquisa, «o conceito de “normalidade” no trabalho de parto e parto não é padronizado ou universal» (3, p.1). Isto mantém-se ainda hoje como uma realidade. Nas últimas três décadas, tendo em mira a melhoria de resultados respeitantes às mães e aos bebés, foi introduzido um vasto número de práticas para induzir, acelerar, monitorizar e amenizar o processo fisiológico do trabalho de parto, tornando, desta forma, o conceito e a prática do “parto normal” num processo em mudança e expansão permanentes. Para além do mais, a noção tão repetida e disseminada de que um “parto só pode ser declarado normal retrospectivamente” levou a que todos os partos fossem considerados e assistidos como se fossem de alto risco.
Se concordarmos com a antropologista Brigitte Jordan quando afirma que a gravidez e parto têm tanto de fisiológico quanto cultural, temos de aceitar que “a forma da sociedade conceptualizar o nascimento constitui o indicador mais poderoso do estado em que se apresenta o seu sistema de assistência perinatal” (5, p 48). E, nos Estados Unidos e no Reino Unido, esse sistema de assistência tem maior probabilidade de actuar em função de um acontecimento clínico e tecnológico, pela mão dos médicos, ao invés de se ver orientado em função de um acontecimento fisiológico e social, pela mão de parteiras.
Tendo em conta isto mesmo, como é que a OMS e as declarações de princípios canadiana e britânica definem “parto normal”? Para começar, cada uma delas define o parto normal na sua acepção mais simples e a um nível mais baixo de risco – como um evento fisiológico, isento de intervenção médica. A definição da OMS (3, p 4):
Considera-se um parto normal como: tendo início espontâneo, de baixo risco no início do trabalho de parto, mantendo-se assim até ao nascimento. A criança nasce espontaneamente, em posição cefálica, entre as 37 e as 42 semanas completas de gravidez. Depois do parto, a mãe e o bebé apresentam-se em boa condição… Num parto normal deve haver uma razão válida para interferir no processo natural.
A definição britânica na sua declaração de consenso (4, p 3):
Segundo o Centro de Informação, a definição de “parto normal” corresponde à avaliação do processo que é o trabalho de parto e não à avaliação do seu resultado. O grupo do “parto normal” inclui as mulheres cujo trabalho de parto tem início espontaneamente, progride espontaneamente, não medicalizado, e que culmina num parto também espontâneo.
A definição constante da declaração conjunta canadiana (1, p 1163) segue de perto a da OMS:
Um parto normal tem início espontâneo, apresenta-se de baixo risco no início do trabalho de parto e assim se mantém até ao nascimento. O bebé nasce de forma espontânea, na posição cefálica, entre as 37 e as 42+0 semanas completas de gravidez. O parto normal compreende a possibilidade de contacto pele-com-pele e de amamentar na primeira hora após o parto.
O foco da declaração da OMS recai exclusivamente sobre os partos de baixo risco, com assistência conforme o mais recente conhecimento científico e, caso ocorra alguma complicação, é recomendada a referenciação para uma unidade de cuidados diferenciados. (3). Aparentemente com a intenção de facilitar a recolha de dados estatísticos para auditorias, as declarações britânica e canadiana introduzem em seguida a definição médica para “normal”, enumerando os critérios que se aplicam a mulheres com “parto normal” que revelem algum tipo de complicação ou que possam requerer “intervenção conforme o mais recente conhecimento científico, em circunstâncias facilitadoras do trabalho de parto e do parto vaginal normal”(1, p 1163). Aqui, “Parto Normal” aparece definido como um acontecimento sujeito a intervenção médica, que pode incluir a aceleração do trabalho de parto; a ruptura artificial de membranas; o alívio farmacológico da dor (óxido nitroso, opióides); e intervenção na terceira fase do trabalho de parto.
As declarações apresentam algumas diferenças. Para os canadianos, o “parto normal” inclui auscultação fetal intermitente e analgesia epidural, mas exclui a monitorização electrónica fetal contínua para partos de baixo risco; em contrapartida, a declaração britânica contempla a monitorização electrónica fetal, mas exclui a analgesia epidural. Para efeitos de definição de “parto normal”, ambas as declarações estão de acordo quanto à exclusão do grupo de mulheres sujeitas a indução do trabalho de parto, analgesia raquidiana, anestesia geral, fórceps ou ventosa, cesariana, e episiotomia. A declaração canadiana exclui ainda deste grupo do “parto normal” a má apresentação fetal.
Pergunto eu, então, por que razão a declaração canadiana considera as epidurais como uma intervenção apropriada num “parto normal”, por oposição à declaração britânica? Este desacordo pode ter origem na forma como a epidural é disponibilizada ou usada na América do Norte e no Reino Unido, ou pode reflectir a crescente prevalência e aceitação deste método de alívio da dor na América do Norte. Estranhamente, muito estranhamente, quando toca a especificar aqueles procedimentos que “aumentam a probabilidade de intervenção médica (e) deveriam ser evitados sempre que possível”(4, p 1), a declaração britânica aponta a monitorização electrónica fetal e as epidurais no trabalho de parto, contudo INCLUI o uso do primeiro no “parto normal” e exclui o segundo.
O que de verdadeiramente positivo e importante nos trazem as três declarações é o forte comprometimento e promoção dos aspectos fisiológicos e sociais do trabalho de parto e nascimento, incluindo o respeito na assistência, a preparação pré-natal, o apoio em trabalho de parto, a escolha e consentimento informados, o ambiente acolhedor, os métodos não farmacológicos de alívio da dor, a informação e práticas baseadas no mais recente conhecimento científico, o evitar de intervenções por rotina, o alojamento conjunto mãe-bebé, a disponibilidade de parteiras na prestação de cuidados individualizados (3,4), e a escolha do local do nascimento, incluindo o parto domiciliar (3,4).
Ao “Parto natural”, tanto ao termo como à prática, têm os canadianos vindo a conferir nova relevância. É gratificante ler que “as grávidas de baixo risco devem ser informadas, incentivadas e apoiadas no sentido de virem a experienciar um parto natural” e que “os profissionais de saúde devem contar com informação, incentivo e apoio para facilitarem o parto natural”(1, p 1164). De igual modo, a declaração britânica também referencia a formação e treino de “parteiras para apoiarem as mulheres que desejarem parir sem intervenções tecnológicas”(4, p 2). (Isto soa-me a “parto natural”)
Foi igualmente gratificante ler, na declaração canadiana, que “um parto vaginal que se segue a uma gravidez normal é mais seguro para a mãe e para o bebé do que uma cesariana” e que “a cesariana não deveria ser sugerida à mulher grávida, quando não houver indicação obstétrica para tal”(1, p 1164). Actualmente, quando as taxas de nascimento por cesariana disparam de forma alarmante por todo o mundo, talvez seja tempo de fazer renascer o “parto natural”.
Precisamos mesmo de mais declarações sobre o “parto normal”? Inicialmente, pensei que não – pensei que as declarações britânica e da OMS eram suficientes. A declaração canadiana sublinha muito do que já havia sido declarado e recomendado, mas acrescenta mais umas quantas peças à visão permanentemente em expansão do que é o “parto normal”. Cada país e região tem um sistema de saúde, recursos e lacunas que exigirão soluções quer universais, quer culturalmente específicas. A declaração da OMS é a única que identifica diversos prestadores de cuidados no parto (obstetras-ginecologistas, parteiras, clínicos gerais, e prestadores tradicionais) e os seus papéis no parto normal. (3). A declaração britânica refere as “parteiras” e descreve o seu papel como prestadoras primárias no parto normal, contando com a “consultadoria obstétrica” como apoio; os “clínicos gerais” não são mencionados (4). A declaração canadiana faz apenas referência genérica a “profissionais de saúde materna” e a “profissionais de saúde”, mas não faz menção a “parteiras”, “médicos de família”, ou “obstetras-ginecologisas”, nem define os seus papéis no parto normal. (1). Deveria.
A declaração canadiana recomenda o desenvolvimento de linhas de orientação próprias, a nível nacional, para práticas respeitantes ao parto normal. Este esforço positivo é bem-vindo. Quando tal for uma realidade, incito a SOGC e os seus parceiros a seguirem o exemplo do Grupo de Trabalho Britânico para os Cuidados Maternos (4) e convido os activistas nesta matéria a juntarem-se a eles na definição das ditas linhas de orientação, uma vez que a sua contribuição não aparece prevista na “Declaração Conjunta de Princípios sobre o Parto Normal” (1).
Como fica claro, “normal” tem um sentido diferente em países diferentes. A definição cultural dominante e a experiência de parto na América do Norte e em diversos outros lugares são sobejamente reconhecidos como clínicos e tecnológicos, quer na filosofia, quer na prática (3,5), como evidencia a inclusão de critérios médicos enumerados nas declarações britânica e canadiana (1,4). Enquanto as estruturas de apoio ao parto mantiverem este rumo, a definição de “normal” manter-se-á em evolução. Grupos de utentes e profissionais de saúde terão de continuar a fazer ouvir a sua voz, em defesa do parto natural e, esperemos, de um “parto normal” mais normal.
Diony Young
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Referências:
1 – The Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada et al. Joint Policy Statement on Normal Childbirth. J Obstet Gynaecol Can 2008;221:1163–1165.
Links:
2 – Dick Read G. Natural Childbirth. London: Heinemann, 1933.
3 – World Health Organization, Maternal and Newborn Health/Safe Motherhood, Division of Reproductive Health. Care in Normal Birth: A Practical Guide. WHO/FRH/MSM/96.24. Report of a technical working group. Geneva: WHO, 1997. Accessed January 6, 2009. Available at: http://www.who.int/reproductive-health/publications.
4 – The Royal College of Midwives, The Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, The National Childbirth Trust. Making Normal Birth a Reality. Consensus statement from the Maternity Care Working Party. November, 2007. Accessed January 6, 2009. Available at: http://www.rcog.org.uk.
5 – Jordan B. Birth in Four Cultures. 4th ed. Prospect Heights, Illinois: Waveland Press, 1993.
Traduzido por Bionascimento.