Susan Hodges, MS
SUMÁRIO
Estão as parturientes a ser tratadas de forma abusiva nos hospitais? Apesar de raramente serem reconhecidas como abuso ou violência contra as mulheres, a intimidação e a actuação médica sob falso pretexto, mesmo num hospital, constituem um abuso e um atentado aos mais elementares direitos humanos, que merece atenção. A identificação deste problema é um primeiro passo. O poder da autoridade médica, a dificuldade de responsabilização no sistema hierárquico hospitalar, a existência de protocolos e políticas de actuação, e as expectativas de submissão formam, no seu conjunto, o ambiente ideal para a prevalência do abuso e constituem um obstáculo à sua identificação e erradicação, quer por parte da mulher, quer pela parte dos profissionais de saúde. Aprender a reconhecer o abuso e a actuar de forma efectiva, e compreender as exigências legais no que toca ao “consentimento informado”, podem ser uma ajuda, mas acabar com o abuso exige uma mudança em todo o sistema.
Independentemente da opinião de cada um, o interesse nacional pela reforma do sistema de saúde norte-americano trouxe, pelo menos, a tão necessária atenção dos media para os problemas da assistência à maternidade, como sejam o excesso de cesarianas e outras intervenções, o elevado despesismo e os fracos resultados.
Um problema menos divulgado na assistência à maternidade é a forma como as parturientes são tratadas em meio hospitalar. Não obstante a presença de médicos e equipas de assistência realmente atenciosos e zelosos, todos os que lidamos com mulheres grávidas já ouvimos ou testemunhámos inúmeros exemplos de abuso verbal ou físico dirigido a mulheres que dão à luz em hospitais. Embora frequentemente não reconhecido como abuso, este comportamento para com as mulheres, em especial no parto, é inaceitável e nocivo. Algumas formas de abuso, como a falta de consentimento informado, a apresentação ambígua de situações clínicas, e ameaças, contribuem, provavelmente, para as elevadas taxas de intervenções desnecessárias e para a ocorrência de partos traumáticos.
Falando de abuso na assistência ao parto em meio hospitalar, acredito que estamos em situação idêntica à que estávamos nos anos 50 e 60 do século passado no que respeita à violência doméstica contra as mulheres. O abuso e a violência eram uma realidade, mas não tínhamos nome para lhes dar. Se o seu marido ou namorado manifestassem qualquer forma de abuso verbal ou físico, isso correspondia à sua forma de ser e pronto. Provavelmente, como mulher até teria culpa disso, mas, fosse como fosse, não haveria muito a fazer.
Muitos anos de trabalho por parte de mulheres corajosas e determinadas alertaram-nos para o facto de o abuso verbal e físico contra as mulheres ser nocivo e inaceitável; e mais trabalho criou precedentes legais, deu início à formação de juízes, polícias e funcionários hospitalares, e permitiu o desenvolvimento de grupos de apoio e casas de acolhimento. Estas formas de abuso perduram hoje em dia, mas, pelo menos, são reconhecidas à luz da lei por aquilo que são, o público está muito mais alerta, e as mulheres têm como conseguir apoio a diversos níveis.
O abuso na assistência ao parto em meio hospitalar pode não parecer o mesmo que o abuso e a violência doméstica, mas não é menos nocivo. O abuso verbal inclui comportamentos como ameaçar, repreender, ridicularizar, constranger, coagir, gritar, subestimar, mentir, manipular, gozar, omitir ou negar informação – comportamentos que destroem a auto-estima do seu receptor, ao mesmo tempo que reforçam a sensação de poder por parte do abusador, como é típico dos actos de intimidação. A maior parte de nós reconheceria estes comportamentos como abusivos em qualquer outro contexto. No entanto, como somos socializados no sentido de esperarmos um comportamento profissional e de confiança por parte do meio hospitalar, e para sermos “submissos” perante indicações médicas, só muito raramente estes comportamentos são reconhecidos e interpretados como formas de abuso. Para além do mais, os médicos e respectivas equipas são as autoridades no hospital, enquanto a parturiente é só uma “paciente”. Um tal desequilíbrio de poder permite, e encoraja até, a intimidação e o abuso. A tendência é então para nos sentirmos indefesos, de forma que racionalizamos e aceitamos estes comportamentos, enquanto negamos o facto de os estarmos a experienciar.
O abuso inclui ainda acções como o acto médico sem consentimento informado, a omissão de informação, a desconsideração da recusa de um tratamento e a apresentação ambígua de situações clínicas e da necessidade de intervenções. Como o médico é o perito, a mulher pode não ser capaz de dizer se o médico está a omitir informação ou a apresentar a sua situação clínica de forma ambígua. Algumas mulheres foram já tratadas de forma extremamente hostil, inclusive sujeitas ao retardamento de formas apropriadas de alívio da dor e óbvio abuso sexual. Actos médicos inapropriados, como a administração de ocitóxicos enquanto o bebé apresenta sinais de sofrimento (o que conduz a uma cesariana) são também claramente abusivos, no entanto, são raras as mulheres que estão conscientes de que isto configura uma situação de maus tratos deliberados. Médicos que noutras circunstâncias pareciam incapazes do menor abuso, podem incorrer nesta forma de tratamento, e as enfermeiras podem sentir-se impotentes para actuar.
As taxas de ocorrência de diversas intervenções obstétricas – dos exames vaginais em trabalho de parto à medicalização, induções e cesarianas – têm vindo a aumentar, e as episiotomias continuam a ser praticadas. O facto de cada um destes procedimentos invasivos se apresentar como medicamente injustificado, em mais de metade das ocorrências, é um indicador claro de que as mulheres que dão à luz nos hospitais estão a ser vítimas de abuso e dano, quer físico, quer emocional.
É frequente os médicos conseguirem levar as parturientes a “concordar” com determinadas formas de intervenção, devido à desproporção de poder entre o médico e a mulher, à dificuldade na atribuição de responsabilidades no sistema hospitalar, e à expectativa social de que o médico só faz recomendações que são necessárias para a nossa saúde e segurança e de que os “pacientes” devem ser submissos. Logo, normalmente esta forma de violência não parece “violenta”. No entanto, drogar e cortar uma mulher grávida sem indicação médica para tanto é um acto de violência, mesmo quando praticado por um médico num hospital. Para além disto, tenho ainda ouvido muitas mulheres e profissionais de saúde desculpando os médicos pela prática de cesarianas injustificadas, como forma de “medicina defensiva”. Nos EUA, em que outra área da vida se toma por aceitável ou legal a prática de uma cirurgia abdominal major, como forma de reduzir as probabilidades de um processo em tribunal? Não é isto ainda mais violento que um olho negro? Não será ainda mais insidioso?
O problema do abuso na assistência ao parto em meio hospitalar não é culpa da mulher, nem é um problema de uns quantos indivíduos abusadores. É um problema do sistema em geral, viabilizado pela falta de responsabilização e por uma cultura de impunidade na hierarquia hospitalar, onde o abuso e o assédio são disseminados a partir do topo, afectando todo o pessoal hospitalar e também os pacientes. Acresce ainda que, quando a autoridade tem como fundamento da sua actuação os interesses das cúpulas (em todas as suas variantes), não pode haver acordo sobre o que é melhor para a mãe e bebé. Este desencontro acaba por conduzir também ao recurso a intervenções desnecessárias.
Há alguma coisa que possamos fazer? Na actualidade, melhorar esta situação exige mudanças no próprio sistema. De qualquer forma, reconhecer que o problema existe é um primeiro passo essencial e pode ajudar algumas mulheres a evitar ou prevenir o abuso.
Para as mulheres grávidas, o facto de saberem para o que devem estar alerta aumenta a probabilidade de reconhecerem sinais de desrespeito ou intimidação por parte dos médicos e restante pessoal hospitalar, de forma a poderem actuar antes do início do trabalho de parto, assim que se apercebam que o problema pode vir a manifestar-se. Em relação aos médicos e respectivas equipas, podemos estar em condições de os ajudar melhorando a compreensão das repercussões de comportamentos danosos e ensinando-lhes comportamentos e palavras de apoio à parturiente, mesmo estando conscientes de que nem toda a gente estará aberta a esta informação.
Podemos melhorar o estado de alerta entre as mulheres identificando situações de abuso como tal e facultando informação sobre o mesmo – as formas que pode assumir e maneiras de lidar com este fenómeno – isto nas aulas de preparação para o parto e no apoio prestado por doulas. Está disponível excelente literatura e experiência sobre a intimidação e abuso verbal (e.g., Coloroso, 2009; Evans, 1996, 2002; Farrell, 2006, 2007a, 2007b,2007c; Forward, 1997). O contributo de psicólogos e consultores que se especializaram nesta área do comportamento humano podem ajudar-nos por meio de técnicas com aplicação específica em meio hospitalar. Educadoras perinatais e doulas podem ser uma garantia de que as mulheres estão a par dos seus direitos básicos. Os Direitos da Parturiente apresentam-se numa excelente brochura disponível no site da Childbirth Connection (www.childbirthconnection.org). A Joint Comission (www.jointcommission.org), que procede à acreditação de hospitais, tem um panfleto muito útil, Fale: Conheça os Seus Direitos, relacionado especificamente com o direito de ser ouvida e tratada com educação e respeito.
As mulheres que estão devidamente informadas e preparadas para fazer perguntas sobre procedimentos, tratamentos e intervenções ao longo do trabalho de parto, podem lidar com algumas deficiências no que toca ao “consentimento informado”, sem serem apanhadas em intervenções desnecessárias. Um excelente recurso são as Perguntas-Chave Sobre Assistência ao Parto, de Penny Simkin, disponíveis em formato de cartões de visita no Simkin’s Doula’s Handout Packet, disponível, por sua vez, no site da mesma autora (www.pennysimkin.com).
Podemos incentivar as mulheres que viveram formas de abuso, ao longo da gravidez e parto, a preencherem formulários de reclamação. Para saber como fazê-lo ou para outras informações, leia “ Insatisfeita Com a Sua Assistência à Gravidez e Parto? Faça uma Queixa!”, no site do Citizens for Midwifery (www.cfmidwifery.org). Preencher uma reclamação sozinha não vai resolver o problema. No entanto, as mulheres com quem falei que o fizeram, sentiram-se muito mais importantes, e isso ajudou-as a reconhecer perante elas próprias que tinham sido vítimas de maus tratos e que não tinham culpa disso. O preenchimento de uma queixa não implica o apoio de um advogado, e constitui um registo oficial da ocorrência de um abuso. Se um maior número de mulheres preenchesse reclamações, o problema dos abusos na assistência à maternidade poderia ser objecto de mais atenção.
O comportamento abusivo prevalece se ninguém o tornar visível. Pode até acontecer que muitas equipas hospitalares, assoberbadas de trabalho e sob stress, nem se apercebam de que estão a actuar abusivamente com os seus pacientes. As políticas hospitalares e os protocolos médicos podem ignorar as questões do consentimento e da recusa informada, e a estrutura hierárquica do sistema hospitalar pode encorajar atitudes que conduzam a um comportamento abusivo, enquanto constituem ao mesmo tempo obstáculos à confrontação com as situações de abuso, sobretudo por parte das equipas hospitalares. É provável que pelo menos alguns médicos não se apercebam de que as suas acções (ou omissões) podem constituir uma violação das suas obrigações legais respeitantes ao consentimento informado e podem violar a “confiança fiduciária” – a relação e responsabilidades legais existentes entre especialistas e os seus clientes. É possível que possam constituir uma ajuda os módulos de formação e a formação contínua sobre intimidação e comportamento abusivo, bem como sobre requisitos legais. A Coalition for Improving Maternity Services (www.motherfriendly.org) está já a criar panfletos e a dar continuidade a acções de formação sobre o consentimento e recusa informados. Da mesma forma, a Lamaze International faculta unidades de formação contínua sobre o consentimento informado (ver Goldberg, 2009).
Mesmo que a crescente tomada de consciência, quer sobre o abuso, quer sobre direitos, não conduza à alteração das características inerentes à hierarquia do sistema hospitalar, nenhuma mudança é possível sem que nos tornemos conscientes de que o problema existe de facto. O tratamento abusivo das parturientes (incluindo diversas formas de abuso verbal, excesso de medicalização e intervenções, e a ausência de consentimento informado) constitui uma violação dos direitos elementares da mulher e dos direitos humanos em geral.
Fonte: The Journal of Perinatal Education | Outono 2009, Volume 18, Número 4
Tradução: Bionascimento
Nota da tradutora: o enfoque deste editorial é o abuso em meio hospitalar, onde ocorrem aproximadamente 99% dos nascimentos nos EUA. No entanto, o abuso pode acontecer em meio não hospitalar. Nessa medida, pelo menos alguma informação e sugestões apresentadas neste editorial podem ter aplicação em meio não hospitalar.
Este artigo teve um papel importante na criação do projeto mal me quer.
No final de 2014 a Organização Mundial de Saúde, reconhece o abuso e a violência obstétrica como uma das áreas a necessitar de intervenção urgente. Sugerimos a leitura da declaração da OMS.