“O meu filho! Um corpinho quente, escorregadio. A pele dele, única. Peguei toscamente nele, trouxe-o para perto do meu peito.”


Preparei-me para o nascimento do Daniel à minha maneira: Procurei que tudo, desde o início da minha gravidez ao parto, e a partir dos primeiros instantes da vida dele, tudo o que dependesse de mim formasse simplesmente as melhores condições para o início da vida dele. Li muito, pesquisei, reflecti. Como sempre fiz durante a minha vida toda, mantive-me em forma com muita yoga, passeios, boa alimentação, e também quiroprática e acupunctura. E claro, procurei rodear-me das pessoas ideais para acompanhar a minha gravidez e parto, assim como o local ideal para o nascimento.
Foi fácil encontrar a doula ideal: a Sandra. Ninguém melhor para me apoiar nesta viagem, e noutras viagens futuras. Seguindo a norma de ser acompanhada na minha gravidez e parto por um obstetra de eleição, procurei, como uma agulha num palheiro, o médico ideal. Percebi mais tarde que nenhum me ofereceu mais do que a minha óptima e acessível médica de família.
Passaram por mim tantos médicos! O primeiro, observou-me passados poucos dias do teste positivo que fiz em casa. Observou-me de uma maneira afável e peculiar: viu a minha língua, mediu-me longamente a pulsação nos dois pulsos enquanto conversava comigo, e anunciou-me que segundo a medicina chinesa, provavelmente seria rapaz! Ainda mal tinha caído em mim a realidade de que estava a gerar aqui dentro um ser vivo! Foi por isso com imenso espanto que vislumbrei pela primeira vez um traço de quem o meu filho poderia ser.
Como na canção, o segundo chegou como quem vem do nada. Foi um nome que uma amiga me passou. Pouco disse, pouco perguntou, pouco respondeu, e deixou-me muitas instruções. Senti-me intimidada. Mas, foi nessa visita que ouvimos pela primeira vez o bater do coração do Daniel. No silêncio frio e vazio do consultório, esse sinal ritmado e rápido como que vindo do futuro ou de outra galáxia, mas vindo afinal, da minha barriga, transbordou-nos as medidas.
O terceiro, consultei-o devido à sua reputação como respeitador do parto natural. Como quem vem do florista, empenhou-se em conquistar-me. Elogiou a minha estrutura pélvica como sendo compatível com um parto normal, e deu-me ainda mais instruções, receitou-me ainda mais suplementos. Falou muito, ouviu pouco, baralhou-se com a lua e com os ultra-sons. Por fim, recomendou-me que fosse uma boa mãe, e que voltasse dentro de quatro semanas, coisa que não aconteceu.
O quarto, o eleito, escolhi-o porque me agradou o que disse na TV e nos jornais.  Director de uma maternidade, também professor universitário, trouxe importantes progressos à instituição que dirige. Apesar das consultas serem a des-horas e difíceis de conseguir, é um homem genuinamente simpático, por isso resolvemos continuar com ele. Mas, à medida que o grande dia se aproximava, a nossa relação foi-se desiquilibrando, e eu sentia-me cada vez mais numa posição inferior de uma hierarquia, sem voz. Mas cá dentro a minha voz era clara, mantinha-me atenta a tudo. Estava cansada daquele ritual de análises e sessões de CTG, cada vez mais frequentes e incomodativos, mas procurei ser cooperante, em nome de uma relação com a qual queria poder contar.
Entretanto, eu informava-me acerca de qual o melhor local para ter o bebé. Sabia bem o que queria: Um parto tão natural quanto possível, liberdade de movimentos, e práticas médicas informadas. Ponderei o parto em casa, mas não sentindo o apoio e a certeza que necessitava para optar contra a corrente, optei pelo mais estabelecido parto hospitalar. Visitei vários hospitais, falei com pessoal responsável, procurei estatísticas. A verdade é que nenhum deles me inspirou a confiança que desejava. Comecei a sentir-me um pouco encurralada, neste lugar, nestes tempos, em que a medicina parece nada compreender acerca dos nascimentos.
As minhas contracções começaram num Domingo, de manhã cedo. Levantei-me, e comecei a fazer alguns preparativos. Entretanto, fui contando os minutos e segundos, e quando estava já convencida de que se tinha iniciado o meu trabalho de parto, segredei-o ao ouvido do João, que ainda dormia. Avisei também a Sandra, os meus pais… e começou a passagem das horas, das contracções, respirações, sussurros.
Passaram-se mesmo muitas horas! Não me lembro bem quando cada coisa aconteceu, mas lembro-me de falar ao telefone com a Sandra, contar o que estava a sentir… Sentar-me muito aconchegada na cadeira de baloiço, com as pálpebras fechadas, a baloiçar-me, por vezes a dormir… E as contrações iam e vinham, às vezes mais fortes, às vezes mais frequentes… Era uma dor bem forte, cá dentro, que me vazia parar, puxava toda a minha atenção, e deixava-me descansar… Experimentei entrar no banho, e senti-me muito bem, mas quando saí a dor foi assustadoramente forte, pelo que não voltei a entrar. Se calhar não devia de lá ter saído!
A Sandra chegou no dia seguinte. Mais tarde chegou também a enfermeira que trabalha com a Sandra. Ela ia camedindo o ritmo cardíaco do Daniel, bem como a minha dilatação. Queria ficar tanto tempo quanto possível em casa, e estes números, bem como outros desenvolvimentos que ela ia observando, ajudavam-me a sentir mais segura. O João, sempre muito atarefado ia tratando de tudo cá em casa, e preparou-me um caldinho delicioso que muito me reconfortou. A Sandra ia falando comigo e ia usando pequenos truques que me ajudavam a sentir-me bem e confiante. Trouxe-me uma bola de ginástica especial onde me sentei para mexer devagarinho as ancas, e amarrou um lenço à volta da minha barriga que me trouxe algum conforto. Entretanto, os meus pais vinham a caminho. Durante essa noite, as contracções foram ficando mais ritmadas, e a minha dilatação estava a aumentar devagar mas seguramente. Tudo se encaminhava certinho para o desfecho que eu mais desejava: um parto natural, saudável, calmo.
Reservei-me o direito de ponderar até aos últimos momentos em que hospital iria parir. Chegou então a altura de partir, de manhãzinha, e foi aqui que as coisas começaram a fazer menos sentido. Sair de casa, entrar no carro, dirigir-me para a auto-estrada em hora de ponta e atravessar o rio, não era definitavemnte aquilo que mais me apetecia fazer. Assim como não me apetecia estar numa fila para me registar, esperar para ser admitida, preencher formulários e responder a muitas perguntas. Mas eu lá fiz isso tudo, agachava-me com a passagem de cada contracção, e com a confiança de quem tem a lição bem estudada e sabe que está tudo bem, passei o teste do CTG, do “toque”, vesti aquela bata ridícula, e entrei com o João para a sala onde se daria o parto. Os meus pais, que entretanto tinham chegado também, esperaram lá fora. Mais tarde, conseguimos que a Sandra entrasse também, e foi bom podermos estar lá os três.
Se as coisas começaram com pouco sentido, aos poucos o sentido foi-se perdendo todo. Pedi água, e uma enfermeira trouxe-me um pequenino copo de plástico meio-vazio, e disse que era tudo o que teria até nasceres. Outra enfermeira negou, sempre sorridente, os meus pedidos para me mostrar como a cama se poderia transformar de modo a eu não ter de estar deitada. (Sim, porque se até durante a gravidez a posição deitada era extramemente desconfortável, com as contracções era para mim impensável.) Houve uma ou duas visitas de estudantes, aos quais explicaram que eu tinha trazido um plano de parto onde pedia para ter liberdade de movimentos, ao que um engraçadinho resumiu que eu queria fazer ginástica. Havia uma casa de banho, mas era pequenina, desconfortável, muito difícil de usar para quem tinha uma barriga do tamanho de um mundo, mas lá fui conseguindo roubar umas goladas de água de que bem precisava. Amarraram-me uma cinta com um CTG portátil, que comunicava com uma máquina que mostrava uns números e fazia “bip, bip”, e disseram-me que poderia deambular. Mas a verdade é que quando me mexia, perdia-se a ligação e os sons ficavam diferentes. Eu não me ralava nada com isso, pois sentia, sabia que tudo estava bem. E durante bastante tempo ninguém se preocupou, provavelmente porque estavam distraídos com o que se passava nas outras salas.
Estavam eles, e estava também eu, pois era de facto difícil não perceber o que se estava passar. Enquanto eu me recatava naquela salinha, no silêncio, a ouvir os “bip”, e a lidar com as minhas contracções, duas mulheres tiveram os seus filhos, enquanto gritavam com quanta alma tinham pelas suas mães. Ainda outra teve uma cesariana de emergência, devido ao cordão que estava saído, como foi fácil saber pelos gritos que o pessoal médico atirava através dos corredores enquanto corriam de um lado para o outro. Ouvi tudo o que se passava como se fosse na mesma sala que a minha. Como é fácil imaginar, tudo isto despertou em mim uma vontade de travar o que se iria passar comigo. Pelo que não fiquei espantada quando a obstetra mediu dolorosamente a minha dilatação e me disse que tinha regredido.
Foi por volta da meia-noite que as coisas começaram a precipitar-se. Não é que progressão do meu trabalho de parto tenha acelerado grande coisa. Apesar de sentir que tudo estava bem e normal, a verdade é que a minha dilatação quase não aumentava. Mas parece-me que por falta de outra distracção, a obstetra virou as suas atenções para mim, e anunciou: “Já é tarde, vamos despachar isto”. Inocentemente, tranquilizei-a de que não tinha pressa. Respondeu-me que o meu trabalho de parto não estava a progredir, e eu confessei-lhe que toda a azáfama que se passara anteriormente me tinha afectado. De olhar atónito exclamou “mas isso não interessa para nada!” e retirou-se.
Quando voltou, desta vez concentrada no meu CTG deficiente, vaticinou “Essa posição está a pôr o bebé em sofrimento”. Eu então expliquei-lhe, como já o tinha feito a outros “visitantes” interessados no comportamento do meu CTG, que os contactos não estavam bons. Retorquiu que ela é que sabia pois ela é que era a obstetra. Não foi em voz alta que relembrei o óbvio — era eu a mãe, eu é que tinha o bebé dentro de mim há nove meses –, e percebi que na minha posição, nem um doutoramento me trazia crédito. Apesar do meu silêncio submisso, foi então que a pressão começou a sério. Ameaçando com a intervenção da obstetra, a enfermeira sugeria que eu me deitasse de modo a que o CTG funcionasse melhor. Convenceu-me a experimentar por uns segundos a posição de lado, que aumentou terrivelmente as minhas dores. “Isso resolvia-se com uma ocitocina”, murmurava a obstetra volta e meia, quando me vinha fazer “o toque”. E quantas vezes me fizeram o toque! Vinha a enfermeira, enfiava os dedos e declarava um número, passado uns minutos entrava outra pessoa, e fazia o mesmo. Digo outra pessoa, porque a verdade é que já não sabia quem era quem. E uma vez, tentando evitar um novo toque ainda disse “Fizeram-me o toque ainda agora — a dilatação era 9”, “Ah é, vamos ver isso”, enfiou-me os dedos de novo e anunciou “8!”. Acabei por ceder, quando a obstetra me deu um prazo para que o bebé nascesse, e aceitei que me rompessem as membranas numa tentativa de acelerar a progressão do trabalho de parto.
Perguntavam-me se já tinha vontade de fazer força… e eu não tinha.  De olhos postos no CTG, informavam-me de que estava a ter uma contracção, mas eu não o sentia. Sentia-o noutras alturas. De vez em quando a obstetra e a enfermeira, afastavam-se e falavam entre si. À sugestão da Sandra que me explicassem as suas intenções, a obstetra respondeu que não falava com ela, e que eu se tivesse dúvidas sabia perguntar. Assim de uma só penada foi para o lixo o principal pedido do meu plano de parto — informação. Já farta, a dada altura respondi que sim, que sentia vontade de fazer força. A obstetra constatou que o Daniel já não estava bem encaixado, e fez uma manobra muito dolorosa com as mãos. Comecei então a fazer força, toda a força que tinha, mas sentia que era infrutífera, não era natural. Então, cedi também à ocitocina. Todos lançavam instruções acerca de como deveria fazer. “Com genica, com genica!”, “Não é assim!”, “Queixo no peito!”, “Fazer cocó, fazer cocó!”, “Força contínua, força contínua, não pares para respirar!”, “Respira!”, “Segura esta barra! Puxa os joelhos!”. Acho que nunca tinha ouvido tantas vezes a palavra “genica” na minha vida. E quando a enfermeira atirou “Não é assim! Não fizeste curso de preparação para o parto?”, só não respondi que ela é que parecia não tê-lo feito porque era ela quem tinha (dentro de alguns minutos, literalmente) a faca e a vagina na mão! “Ela não tem contractilidade nenhuma, não faz força nenhuma.” Entretanto, a enfermeira pressionava com os dedos na minha vagina, de modo a estimular a minha vontade de fazer a força. E, com os dedos, passava a ferro a abertura, alargando-a. Torturava-me! Mas, enquanto fazia isso, concentrava-se no que eu queria, um parto vaginal, sem instrumentos. Não queria que o João percebesse o que me estavam a fazer, por isso pedi-lhe que viesse para trás de mim, e pressionasse certos pontos nos meus ombros pois, conforme nos tinham ensinado, poderia ajudar.
Tinha o soro no braço, onde caía a ocitocina. Tinha as pernas no ar, suportadas desconfortavelmente por baixo dos joelhos. Iam-me deitando cada vez mais, posição que mais detestava. E por fim cobriram-me as pernas com uma capa verde. Aí começou o meu pânico. Que é isto?! Para quê? Estava verdadeiramente encurralada, amarrada àquele equipamento, toda exposta. Frágil, em dor. Tentei ignorar tudo, e pensar só no Daniel, em como eu queria que nascesse da melhor maneira possível, naturalmente. Puseram-me a máscara de oxigénio, que era abafada e tapava-me os olhos. Desesperada com o calor e o cansaço, arranquei a bata. Queria que tudo acabasse rapidamente, com medo do que poderiam fazer-nos. Fiz força a acompanhar as ondas de contracções. Ouvi “Vai lacerar!” e uma tensa troca de palavras entre a obstetra ameaçadora e a enfermeira reticente. Movimentações. Gritei das minhas entranhas “Não!”. Ficou o silêncio. Fizeram-na. Cortaram-me. Só me restava fazer força. Já não compreendia a dor. Já não sabia o que restaria de mim. Não percebia se estava perto ou longe. A dada altura, nasceu! Ouvi muitas vozes dizer “Parabéns.”. E, conforme sabia eu bem, “É um bebé forte.”.
O meu filho! Um corpinho quente, escorregadio. A pele dele, única. Peguei toscamente nele, trouxe-o para perto do meu peito. Carinha vermelhusca, espantado por ter nascido, chorou “Mééé!”! Enquanto os outros tagarelavam acerca do corte do cordão que já não nos unia, eu pedia para me ajudarem a dar-lhe de mamar, pois estava fraca e numa posição difícil. Trouxe finalmente a sua boca à minha mama, resguardando-o da luz conforme podia. Eu e ele, numa bolha só nossa, ignorando tudo o resto. Tive-o comigo, um pouquinho, e depois levaram-no. Pedi ao João que o acompanhasse, mas não o autorizaram. Senti-me quase aliviada por não o ter comigo durante aquele tempo em que me deram os pontos para tratar da episiotomia e das duas lacerações com que fiquei. É que foi extremamente doloroso, e eu não queria transmitir-lhe o sofrimento por que estava a passar. Carregaram na minha barriga. Tinha cãibras nas pernas. Sentia sangue a escorrer. Quase que como consolação, mostraram-me a placenta, à qual levantei um sobrolho de curiosidade, mas não consegui prestar as merecidas atenções.
Por fim tinha-o de novo comigo. Passaram-nos para uma outra cama, e levaram-nos a ver os meus pais. Tinha muita fome, e a minha mãe, sempre preparada para tudo, arranjou-me um iogurte. Depois deixaram-nos a sós no corredor. Apesar do pequeno-almoço ser só às 7h, convenci alguém a trazer-mo mais cedo. Trouxeram um tabuleiro com uma espécie de pequeno-almoço, que eu comeria rapidamente se tivesse forças para tal, mas eu mal chegava ao tabuleiro. Uma enfermeira impaciente lá mo aproximou e eu comi o que consegui daquele pão salgado e do sumo doce. Olhámo-nos longamente nos olhos. Que bebé tão lindo!
Os dias e noites na enfermaria foram longos, tão longos. Sabia que deveria dormir, para recuperar das noites do trabalho de parto e preparar-me para as noites mal dormidas das semanas, meses que se seguiriam. Mas como, dormir? Queria olha-lo, analisa-lo, conhece-lo! Queria toca-lo, nutri-lo, aquece-lo.
Eu estava muito fraca e não podia sequer sentar-me porque perderia os sentidos. Eu era “a da hemorragia”, e então deram-me ferro pela mesma veia em que recebera a ocitocina. Rapidamente comecei a sentir-me mais forte, passado umas horas já me conseguia levantar. Mas sentar-me era muito doloroso, porque estava toda em ferida. E outros bebés choravam, e outras mães queixavam-se. Enfermeiras visitavam-nos e tratavam de mim, verificavam se estávamos bem; perguntavam quando o bebé tinha mamado, se tinha feito cocó.  E de vez em quando chegava a hora das visitas. Vinha o João, vinham os meus pais. As refeições do hospital eram fracas, então o João trazia-me da nossa comida, tudo fresco, biológico, delicioso: iogurte, fruta, pão, chocolate… mmm!
Por fim chegou o dia de ir para casa. O meu pai filmou tudo, como tinha de ser. Mas eu não me sentia nenhuma estrela. Queria recolher-me, tratar de mim. Foi um nascimento duro, e sinto alguma tristeza em pensar que o Daniel terá absorvido ainda que uma gota da infelicidade que passou por mim enquanto lidava com toda esta dureza. Valeu tudo a pena, e voltaria a enfrentar tudo as vezes que fosse preciso para ter comigo o Daniel. Mas a verdade é que o meu sofrimento não terminou com o parto, e estou bem consciente de que muito do que passei não era necessário. Desejo agora um novo parto, desta vez em sintonia comigo, com o meu bebé, e com a naturalidade do nascimento.  Agora sei bem a importância de estar num ambiente em que, acima de tudo, nos respeitam.

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